Eu sempre tive um fraco por histórias adolescentes. As amizades que parecem pra vida toda, as paixões arrebatadoras, o primeiro gostinho da independência: quase melhor do que viver tudo isso, era sentar em frente à tela pra assistir a um filme que preenchesse esses requisitos. Todos os clichês são bem-vindos, dos problemas na escola aos corações partidos.
O tempo passou, eu cresci, e o gênero coming of age — esse que mostra a transição da adolescência pra vida adulta — continua sendo meu favorito. Na tentativa de racionalizar essa minha preferência (e contrariando os ensinamentos da terapia sobre sentir mais e analisar menos), eu decidi revisitar alguns dos meus filmes preferidos dessa categoria. Talvez tenha sido um pouco em busca de conforto também, já que existe algo de satisfatório em apertar o play já sabendo o que vai receber de volta. A zona de conforto às vezes é a maior paz.
Comecei minha “maratona” (entre aspas, porque, seguindo o lema desta newsletter, essa lista foi consumida ao longo de meses, no oposto da velocidade que a palavra maratona pode indicar — e da rapidez com que eu, de fato, maratono os reality shows mais duvidosos dos streamings, mas isso é papo pra outro dia) com E Então Nós Dançamos (2019), dirigido por Levan Akin. Um mergulho na cultura da Geórgia, o filme conta a história de Merab, um dançarino do tradicional grupo de balé nacional. Depois que conhece Irakli, o novo integrante da companhia de dança, Merab começa a questionar não só sua sexualidade como a rigidez do contexto em que está inserido.
Vale dizer que esse é o primeiro filme com temática abertamente LGBTQIAP+ da Geórgia, país de maioria conservadora e com grande influência da Igreja Ortodoxa Georgiana, que é anti-LGBTQIAP+. A estreia da produção teve vários protestos violentos no país, mas todos os ingressos esgotaram em menos de 15 minutos pros três dias em que ficou em cartaz na capital Tbilisi. O filme já seria importante só por existir, mas tem uma sensibilidade em contar a história de Merab que vai além da condição política, porque não está interessado em mostrar só o que o personagem representa, mas o que ele sente. E poucos sentimentos são tão universais quanto as incertezas da busca pela identidade na adolescência — ainda mais sendo queer. Se eu ainda não te convenci a assistir, pode ajudar saber que a trilha sonora tem ABBA e Robyn.
Quando cheguei em O Sonho de Wadjda (2012), me dei conta de que eu tinha um padrão: protagonista rebelde + contexto autoritário. Coincidência ou não, esse filme também é de um país conservador, a Arábia Saudita — é, aliás, o primeiro longa filmado inteiramente no país, e o primeiro de uma diretora saudita, a Haifaa al-Mansour. “A voz de uma mulher é sua nudez”, diz alguém logo nos primeiros minutos. Essa frase ficou por um bom tempo ecoando na minha cabeça, não me lembrava dela da primeira vez que assisti, e me fez pensar no quanto a sobrevivência de uma mulher pode se amparar na linha tênue entre calar e se expressar.
Wadjda é uma menina de 10 anos que sonha em ter uma bicicleta num lugar onde bicicletas são consideradas inadequadas pra meninas. Ela é uma rebelde por natureza, mas, pra conseguir o que quer, faz o que é preciso pra se encaixar nos moldes do comportamento religioso imposto pela escola. E ela é até bem sucedida no papel de se calar por algum tempo, mas (sem muitos spoilers) sua personalidade fala muito alto.
O que me pega nesse filme — além do carisma da Wadjda — é como a protagonista lida com a inadequação, outro sentimento quase inerente à adolescência. Aqui, ela também se sente excluída do seu meio social, mas a diferença é que ela não quer pertencer. Até quando tenta se encaixar, é por um objetivo subversivo, não por querer ser parte daquele contexto que ela sabe que a diminui e que faz outras sofrerem.
Tenho a sensação de que Wadjda se daria muito bem com Lale, a caçula das cinco irmãs de Mustang (2015), da diretora Deniz Gamze Ergüven. Em uma vila tradicional da Turquia, as irmãs, que perderam os pais, vivem sob a tutela de parentes rigorosos enquanto são pouco a pouco retiradas da normalidade da adolescência e preparadas pra casamentos arranjados. É uma fábrica de esposas, como define Lale, que lidera e encoraja as irmãs mais velhas em (nem tão) pequenos atos de rebeldia. Sempre me emociono com esse filme, especialmente pelo senso de proteção tão forte entre as mulheres da família.
Em Girlhood (2014), da Céline Sciamma, existe uma atmosfera parecida, essa da irmandade como o maior dos escudos. Nesse caso, as garotas não são de fato irmãs, mas quatro amigas vivendo nos subúrbios de Paris. A protagonista é Marieme, uma adolescente com problemas na família e na escola que decide começar uma nova vida depois de conhecer um grupo de três garotas. Ela muda de nome, de cabelo, de roupa, de atitude e começa a provar a liberdade enquanto anda, dança, bebe, briga e canta Rihanna a plenos pulmões abraçada com as amigas. Aliás, a cena em que elas fingem gravar o clipe de “Diamonds” é, pra mim, a representação perfeita do pertencimento que a gente tanto busca nessa fase — e ao longo da vida toda, em alguma medida.
Às vezes, pra ser parte de um grupo, é preciso adaptar quem somos. Mas será que isso invalida o sentimento de inclusão? Talvez exista uma certa idealização ao redor do discurso de “seja você mesmo” e suas variantes. Me parece natural que a gente não seja exatamente a mesma pessoa em todos os lugares, em todas as ocasiões, com todas as companhias. O que acontece é que na adolescência essa adaptação é levada ao extremo, e faz sentido que seja. Numa época em que tudo começa a mudar, é preciso encontrar os próprios refúgios.
Em Girlhood, a transformação de Marieme não está ali só pra que ela seja aceita numa comunidade. Na verdade, as mudanças ajudam a construir uma armadura que a possibilita existir em um lugar muito mais assustador do que um grupo de adolescentes pode ser.
Tenho dificuldade de escrever sobre coisas das quais eu gosto muito. Talvez por isso tenha deixado pro final meu filme preferido: Retrato de Uma Garota do Fim dos Anos 60 em Bruxelas (1994), dirigido por Chantal Akerman (outra favorita). Trouxe até a sinopse pra me ajudar: “A personagem principal, Michèle, passa uma hora discutindo suas visões de mundo com velhos e novos amigos, tentando entender seus próprios sentimentos sobre seu lugar no mundo e sua sexualidade, enquanto a câmera a segue bem de perto”. Mas, claro, é uma definição simples demais.
Eu poderia falar aqui sobre as conversas existenciais de Michèle e Paul — em determinado momento, ela cita o filósofo dinamarquês Kierkegaard, em “Diário de um sedutor”, quando compara a tristeza à criança que foi retirada a fórceps do corpo da mãe e se lembra pra sempre das dores terríveis que a mãe sentiu no parto. Também poderia discorrer sobre o quanto eu me vi em Michèle e sua arrogância tão característica da adolescência, aquela que serve como esconderijo pras maiores inseguranças, ou em suas falas como “Você não é obrigado a se divertir, você só tem que fingir, não tem que se divertir de verdade” e “Mesmo quando estou feliz, eu sofro”.
Mas são os momentos sem diálogo do filme que realmente me deixam sem fôlego. Quando dança “Suzanne”, do Leonard Cohen, com Paul e “La Bamba” com Danielle, Michèle deixa sua vulnerabilidade escapar da casca que criou pra si mesma. E é lindo assistir.
Só mais 5 minutinhos
Aqui vai uma lista extra com quatro filmes coming of age que mereciam mais reconhecimento.
Ganhando Espaço (Just Another Girl on the I.R.T.) (1992)
Se você gosta dos filmes do Spike Lee, grandes chances de gostar também desse longa, que trata de conflitos de classe, raça e gênero por meio da história de Chantel. Um bônus: ótimos looks e referências de beleza.
Nunca Fui Santa (1999)
O filme adolescente perfeito existe e tem Natasha Lyonne novinha como protagonista. Ela vive uma adolescente tipicamente estadunidense — líder de torcida, namorado atleta — até que os pais conservadores começam a desconfiar que ela possa ser lésbica e a mandam pra uma escola de “redirecionamento sexual” cheia de pessoas queer. Poucos filmes envelheceram tão bem quanto esse.
Swing Girls (2004)
Garotas rebeldes e com problemas na escola que decidem formar uma banda de jazz. Elas não têm talento, não têm dinheiro, não têm bons instrumentos, mas elas têm carisma. Sério, esse filme é uma joia.
O Diário de uma Adolescente (2015)
Sobre paixões, hormônios e loucuras adolescentes — e a necessidade de ser amada e desejada pra se sentir vista.
Obrigada por chegar até aqui. Te vejo na semana que vem,
Natália