#5: O que você faz com os seus traumas?
Abandono paterno, memórias dolorosas e um pouco de arte
Tinha uma aranha gigante no meio da sala. Foi assim, em uma obra do acaso, que conheci o trabalho de Louise Bourgeois, que ocupava um espaço do Museu de Arte do Rio (MAR), em 2019. Em uma exposição quase discreta — “quase” porque a aranha já despertava atenção o suficiente —, conheci ali alguns dos escritos, desenhos e têxteis em que a artista tratava de temas como abandono paterno, transtornos mentais e sexualidade de maneiras como eu nunca tinha visto.
Desde então, quanto mais conheço sobre a vida e a obra de Louise, mais me prendo à sua capacidade de usar a arte pra dar forma a traumas, memórias e as emoções mais profundas. Ela dizia: “Todos os dias você precisa abandonar o seu passado ou aceitá-lo. Se você não conseguir aceitá-lo, você se torna um escultor.”
Francesa naturalizada estadunidense, Louise Bourgeois se mudou de Paris pra Nova York no fim da década de 1930, junto com o marido, o historiador da arte Robert Goldwater. Sua obra começou a ganhar força nos anos 1940 e seguiu firme até 2010, quando morreu aos 99 anos.
Ainda muito cedo, ela foi marcada pelo trauma do abandono. Talvez na tentativa de lutar contra ele ou simplesmente de expressá-lo, Louise explorou as questões a partir desse sofrimento ao longo de toda a sua carreira. Sua primeira lembrança de sentir medo do abandono é de quando o pai, Louis, deixou a família pra lutar na 1ª Guerra Mundial. Fotógrafo amador, ele fez alguns registros da época que, décadas mais tarde, serviriam como o ponto de partida pra obra “The Trauma of Abandonment” (2001), um livro têxtil com colagens e imagens que destacam essa ausência.
Forçada pelas circunstâncias, ela precisou amadurecer precocemente — desde cedo, cuidava da mãe doente e, aos 10 anos, viu seu pai colocar a amante, Sadie Gordon Richmond, como governanta da casa. O caso entre os dois acontecia ali, bem debaixo dos olhos de Louise e de sua mãe, estremecendo profundamente a ligação entre a artista e seu pai. A relação entre pai e filha, aliás, teve um impacto enorme nas produções da artista.
Na instalação “The Destruction of the Father” (1974), uma das suas obras mais conhecidas, Louise usa látex, madeira, tecido e luz vermelha pra montar uma mesa de jantar que mostra a devoração canibal da figura paterna. Ela costumava afirmar que “é necessário reconhecer o que te oprime, os seus medos ou as emoções esmagadoras provocadas pelo desejo. Só assim você vai encontrar um jeito de entrar em acordo com essas emoções”.
Mais cedo, entre os anos 50 e 60, Louise teve uma depressão profunda e deixou de lado o trabalho com as esculturas, dedicando-se aos escritos. Entre eles, uma série de expressões que ela não estava acostumada a dizer (nem ouvir) em voz alta: “I love you”, “We love you”, “Je t'aime” [eu te amo, nós te amamos, eu te amo]. Em “She Lost It” (1947), ela escreve a seguinte história:
“Um homem e uma mulher moravam juntos. Uma noite, ele não voltou do trabalho pra casa, e ela esperou. Ela continuou esperando e foi ficando cada vez menor e menor. Mais tarde, um vizinho passou por lá e a encontrou no braço da cadeira, do tamanho de uma ervilha.”
Na mesma época, ainda na década de 1950, Louise começou a fazer psicanálise. Ela tinha sessões quatro vezes na semana — e assim seguiria por 30 anos de sua vida, tornando-se também uma estudiosa do tema. Seu psicanalista havia estudado com Freud, e ela absorveu boa parte dos aprendizados em sua forma de trabalhar. Nos autorretratos, por exemplo, Louise estava muito mais preocupada em registrar suas emoções do que sua aparência. Raiva, ansiedade, ciúme, culpa. Tudo era exposto nos desenhos. Até os cabelos longos, que ela manteve durante quase a vida toda, ajudavam a moldar essas emoções, representando força, vulnerabilidade ou caos.
Sempre me pego imaginando o quanto seria bom conseguir transformar a ausência paterna em qualquer coisa além de traumas e pautas pra anos de terapia — que dirá arte — mas deixa isso pra análise mais tarde.
Em busca de alguns dados, vi que este ano o Brasil já tem o maior número de mães solo desde 2018. Nos primeiros nove meses de 2022, foram registradas 128.002 crianças só com o nome materno, o que representa 6,6% do total de bebês desse mesmo período. Os dados estão disponíveis na plataforma Pais ausentes, seção do Portal da Transparência do Registro Civil que reúne informações dos 7.654 Cartórios de Registro Civil do Brasil.
Também encontrei algumas pesquisas clínicas e análises psicossociais sobre o impacto do distanciamento da figura paterna. Entre elas, um estudo feito com adultos entre 25 e 40 anos, que mostra que essa ausência, seja física e/ou afetiva, pode se refletir em “sentimentos de autodesvalorização, abandono, solidão, insegurança, baixa autoestima e dificuldades de estabelecer relacionamentos, que começam a ser percebidos na infância e interferem no desenvolvimento do jovem chegando até a idade adulta”. Ainda segundo as autoras, “a ausência vivenciada na infância e adolescência não se dissipa na vida adulta”.
Na justiça, o abandono afetivo tem sido motivo de condenação e pagamento de indenização por parte de pais ausentes. Em um caso de 2019, por exemplo, um pai foi sentenciado a indenizar a filha porque, segundo os julgadores, os indivíduos que não contam com a presença física, emocional e financeira do genitor, chamados “órfãos de pais vivos”, têm direito à mesma herança patrimonial que receberiam em caso de morte do pai. Na sentença, o desembargador responsável escreveu: “Não se pode exigir, judicialmente, desde os primeiros sinais do abandono, o cumprimento da 'obrigação natural' do amor. Um juiz não pode obrigar um pai a amar uma filha. Mas não é só de amor que se trata quando o tema é a dignidade humana dos filhos e a paternidade responsável. Há, entre o abandono e o amor, o dever de cuidado. Amar é uma possibilidade; cuidar é uma obrigação civil”.
A expressão “orfão de pais vivos” me leva a pensar que sentir essa ausência é também uma forma de viver o luto. A psiquiatria considera que o luto costuma acontecer em um processo de cinco fases: 1º: negação, 2º: raiva, 3º: negociação, 4º: depressão e 5º: aceitação. Com seu trabalho, acho que Louise Bourgeois misturava todas elas. Ao projetar suas emoções e suas ausências emocionais nas obras, a artista parecia inventar a própria maneira de processar seus traumas.
Mas o que essa pesquisa não conseguiu me responder diz respeito às consequências do abandono paterno na relação dos filhos com suas mães. Daddy issues que levam a mommy issues? A loteria do trauma! É que eu já conheci alguns casos de quem vive a ausência do pai — levando anos pra processá-la até chegar, quem sabe, à fase da aceitação — e, nesse meio tempo, também acaba sofrendo no convívio com quem ficou: a mãe.
Na tentativa de compensar o vazio, pode haver um exagero na rigidez e na proteção, que vira disfarce pra uma anulação da liberdade e da identidade dos filhos — um mecanismo que tem o efeito reverso do desejado: mais afasta do que os mantém por perto. Se eu aprendi alguma coisa em anos de terapia, é que nem todo vazio precisa ser preenchido, às vezes a única coisa a se fazer é aprender a conviver com ele.
Medo e proteção: os sentimentos caminham juntos também em “Maman”, ou mamãe, ou a aranha gigante no meio da sala. “Maman” é o título da série de esculturas de bronze e aço em forma de aranha feitas por Louise Bourgeois a partir dos anos 1990. As obras eram uma espécie de homenagem à mãe, Joséphine Bourgeois, que morreu quando a artista tinha 21 anos — outro trauma profundo em sua vida.
Joséphine trabalhava como restauradora de tapeçaria, e sempre incentivava a filha a participar dos processos de costura e de invenção. Além de simbolizar a habilidade de tecer da mãe, a aranha representa o senso de proteção matriarcal, que também pode ser uma ameaça — tanto por seu poder predador quanto pelo tamanho gigantesco das obras. A maior delas, criada em 1999 pra inauguração da galeria Tate Modern, em Londres, tem mais de 9 metros de altura e 10 de largura — o suficiente pra que os visitantes consigam andar por entre suas pernas e debaixo da sua estrutura.
A versão de “Maman” que eu vi não era assim tão imensa, mas fico pensando que estar debaixo de uma escultura como essa deve ser um pouco como a experiência de ser criança e se sentir minúscula no meio dos adultos. Uma época em que ansiedade era só um frio na barriga, um desejo por crescer logo, e que quase todas as coisas e pessoas e cenários pareciam muito maiores do que realmente são. E que a figura materna, a autoridade máxima, podia despertar tanto amor quanto medo.
Mãe de três filhos, a artista também expressava de um jeito cru e honesto seus sentimentos em relação à maternidade. Em março de 1975, ela escreveu em seu diário: “Você precisa de uma mãe, eu entendo. Mas me recuso a ser sua mãe, porque eu também preciso de uma mãe”.
Com a série de instalações Cells, que começou nos anos 1980, Louise Bourgeois criou microcosmos a partir de suas próprias memórias. O próprio título, Cells, faz um jogo com o duplo significado da palavra em inglês: as células, unidades que formam os organismos vivos, e as celas, os quartos minúsculos que abrigam as pessoas presas no sistema penitenciário. Nessas estruturas, a artista guardava objetos, móveis, roupas e representações de partes do corpo — tudo o que remetesse à sua infância. Um pouco de refúgio, um pouco de prisão.
Segundo ela, era uma maneira de dar forma física às emoções. Talvez fosse também um jeito de lidar com a insegurança da memória e a impermanência das lembranças na nossa mente. Ali, registradas em matéria, em objetos palpáveis, elas poderiam durar pra sempre — por mais dolorosas que fossem.
Volto a pensar na carreira de Louise, em como ela fez algumas das suas obras mais impactantes com mais de 70 anos de idade, e em como ela nunca se encaixou nos moldes das expressões artísticas da Arte Moderna ou da Arte Contemporânea.
Hoje, há quem descreva seu trabalho como surrealista, mas, na época, não era bem assim. A própria Louise nunca se declarou surrealista, e o escritor francês André Breton, líder do movimento, tampouco se interessou por seu trabalho. “Os surrealistas não estavam interessados em mulheres. Eles estavam muito interessados neles mesmos”, declarou a artista em 1997.
Em 1975, a crítica de arte dos EUA Lucy Lippard escreveu que considerava irrelevante tentar enquadrar a obra da francesa em um único movimento. “É difícil encontrar uma estrutura vívida o suficiente pra incorporar a escultura de Louise Bourgeois. Tentativas de trazer uma ordem de história de arte pro seu trabalho, ou de enxergá-lo no contexto de um ou outro grupo, já se mostraram irrelevantes. Qualquer abordagem e qualquer material podem servir pra definir suas próprias necessidades e suas emoções. Raramente uma arte abstrata foi tão direta e tão honesta, guiada pela psique de seu criador.”
Ainda que motivada por reflexões e sentimentos pessoais, a obra de Louise Bourgeois também ecoou no coletivo. Foi Lucy Lippard quem descreveu Louise Bourgeois como uma artista que “apesar da aparente fragilidade, sobreviveu a quase 40 anos de discriminação, luta, sucessos esporádicos e esquecimento na cena de arte de Nova York. As tensões que tornam seu trabalho único são criadas exatamente entre os pólos de resistência e vulnerabilidade”.
De fato, resistência e vulnerabilidade são boas palavras pra resumir o trabalho de Louise, mas não as vejo como opostas — é justamente no ponto de encontro entre ambas que a artista mais brilha.
Só mais 5 minutinhos
Se a obra de Louise Bourgeois te interessou, recomendo um passeio pelo acervo online do Museu de Arte Moderna de Nova York, o MoMA. Ele reúne um catálogo bem completo dos trabalhos da artista, desde seus escritos até as esculturas, organizados por temas, tipos de técnica e séries. Dá pra passar horas surfando nessa web.
Obrigada por chegar até aqui. Te vejo na semana que vem,
Natália
Que análise maravilhosa! Adorei a forma como foi "tecendo" a vida, obra e a relação da Louise com as figuras parentais. Fiquei com gostinho de conhecer mais suas obras, as que vi por aqui, me impactaram muito!