Há algum tempo, fiquei com uma certa obsessão em encontrar filmes sobre o ato de relaxar. Não filmes leves, daqueles que a gente assiste quando quer deixar o cérebro lisinho, mas sobre o descanso em si. Queria que essa newsletter fosse o resultado de uma pesquisa bem-sucedida, cheia de títulos sobre o tema pra sugerir. Infelizmente, não é o caso — só o que apareceu como resultado das minhas buscas foram comfort movies.
Essa minha fixação não surgiu à toa. Eu sempre tive muita dificuldade pra conseguir relaxar, e digo sempre porque me lembro de ser assim desde criança. Provavelmente já escrevi em alguns dos textos passados sobre minhas questões com a rigidez, a dificuldade de fugir dos planos e de aceitar a falta de controle diante das circunstâncias da vida. Mas, em algum momento, comecei a sentir raiva do fato de que nem descansar podia ser fácil, descomplicado, propositalmente vazio de significado.
Daí surgiu Toni Erdmann, um filme que resolvi ver só porque era estrelado pela Sandra Hüller, de Anatomia de uma Queda, sem nem ler a sinopse. E foi por causa da personagem vivida por Sandra que eu consegui enxergar de fora muitos dos sentimentos que eu, até então, não sabia nomear. Trata-se de uma história de pai e filha: ele, bem-humorado e descompromissado; ela, o oposto. Em cenas que levam ao constrangimento físico, o filme coloca frente a frente dois extremos: a despreocupação que beira a negligência e a necessidade extrema por controle. Como uma criança que cresceu tendo que exercer responsabilidades que não cabem a crianças, a protagonista se tornou uma adulta rígida, para quem relaxar sempre pareceu um luxo ao qual não podia se dar.
Aqui vai um spoiler inofensivo: quando o pai vai embora depois de uma visita surpresa, ela desaba em lágrimas. Ele desestrutura a rotina da filha, desfaz seus planos, desmonta as fachadas que ela tenta segurar. Enquanto ele leva sua espontaneidade às últimas consequências, ela começa a perceber que o excesso de planejamento e apego às regras pode fazer com que a vida vá passando despercebida.
Talvez essa descrição faça parecer a narrativa piegas, mas prometo que passa longe disso. Não há uma lição de moral, não existem certos ou errados. Me fez pensar sobre como, de uma maneira bem torta, as tentativas de controle são um mecanismo pra lidar com a ansiedade, como se conseguíssemos enganar nosso próprio cérebro de que, assim, vamos amortecer o impacto dos imprevistos.
Se relaxar tiver alguma coisa a ver com a capacidade de respeitar nosso próprio tempo, é importante que não seja visto como um tipo de recompensa (depois de completar uma determinada tarefa, por exemplo), pra que não seja transformado em uma questão de merecimento, tampouco algo que precisa ser constantemente aperfeiçoado.
Isso ecoou ainda mais nos meus pensamentos depois que entrevistei as criadoras da Casa Resistências, um espaço de acolhimento criado pela Coletiva Resistência Lésbica no Complexo da Maré, Rio de Janeiro, pra edição de março da revista Marie Claire. “Mesmo discutindo assuntos sérios, nunca perdemos de vista nossa essência, que é tratar a alegria como uma potência da favela. Na pauta das mulheres lésbicas, é comum que a tristeza seja sempre invocada. Vivemos no país que mais mata pessoas LGBTQIA+ [segundo relatório do Observatório de Mortes e Violências contra LGBTI+]. Desde o dia zero da Coletiva, ouvimos sobre a lesbofobia intrafamiliar como um motivador de tentativas de suicídio e expulsões de casa, levando meninas a ficarem em situação de rua”, disse a co-fundadora Dayana Gusmão. A casa, que já hospedou 38 mulheres em situação de vulnerabilidade, surgiu como um espaço de cultura e formação, mas acabou abraçando outras questões sociais, políticas, econômicas e de gênero que impactavam a vida das participantes.
“No início, a ideia não era ser um grupo político, mas um espaço para bater papo. Era uma reunião na praça, com uma cervejinha, petiscos e troca de ideias. Começamos a ouvir os perrengues umas das outras, e a violência familiar era uma questão recorrente. Como assistente social, eu sabia de políticas públicas que poderiam ser acionadas, então começamos a falar sobre isso. A palavra se espalhou e outras mulheres se juntaram ao grupo em busca de algum tipo de orientação”, contou Dayane. A importância do projeto é indiscutível, mas também me traz o questionamento sobre quem tem direito a relaxar. É um privilégio que nem todo mundo consegue acessar.
Mas Dayane tem razão quando fala sobre a importância de reafirmar a felicidade entre pessoas LGBTQIA+. Há mais do que tristeza, mais do que obstáculos pra conseguir ser quem se é de forma plena, de exercer o amor sem medo. É preciso que se marque a felicidade pra lembrar que ela é um direito.
Pode não fazer muito sentido, mas foi esse o caminho que eu percorri pra chegar na lista de filmes a seguir. Pra mim, eles são como pequenos lembretes de que, nem na vida nem no cinema, a existência queer é feita apenas de sofrimentos. São filmes que se levam pouquíssimo a sério, e isso é maravilhoso. Talvez não sejam obras sobre o ato de relaxar, mas pra relaxar, e tudo bem.
Garotas em Fuga (Drive-Away Dolls), 2024
Depois de terminar com a namorada, a personagem Jamie (interpretada por Margaret Qualley), embarca com a amiga Marian em uma viagem pra cumprir uma missão de trabalho inusitada. Uma delas é um espírito livre; a outra, completamente tensa. É uma dinâmica que funciona muito bem — pelo menos na tela.
Love Lies Bleeding, 2024
Em cartaz nos cinemas, o filme com Kristen Stewart e Katy O'Brian é deliciosamente trash. Na história, a gerente de academia e a aspirante a fisiculturista — que formam um dos melhores casais lésbicos dos últimos tempos — buscam vingança em um contexto atravessado por crimes e violência.
Theater Camp, 2023
Molly Gordon, de Shiva Baby (outro favorito), é a diretora e atriz principal de Theater Camp, que retrata o universo extremamente particular das theater kids, as crianças fanáticas por musicais e fascinadas pela Broadway. É muito engraçado, especialmente se você tiver na manga algumas referências desse mundinho. Um bônus: a participação ótima da Ayo Edebiri.
Bottoms, 2023
Bottoms não tem muitos meios termos — é do tipo “ame ou odeie”, e eu amo. É um filme coming of age e de high school, o que já conta muitos pontos pra mim, e ainda tem Ayo Edebiri e Rachel Sennott como protagonistas. Sob o disfarce de empoderamento feminino, a dupla cria um clube da luta no colégio — a verdadeira intenção é se aproximar das meninas mais gatas da escola. Aqui, o compromisso não é com a lógica, mas com a desordem — e ela pode ser bem divertida.
D.E.B.S., 2004
Uma história de enemies to lovers (ou de inimigos a amantes) em sua melhor forma, D.E.B.S. é, na minha modesta opinião, uma obra-prima subestimada. No longa, um grupo de adolescentes espiãs que lutam contra o crime (!) veem uma de suas integrantes se apaixonar por sua maior oponente. Duas décadas depois do lançamento, já dá pra dizer que é um clássico.
sou muito fã de bottoms, debs (caramba, fez parte da minha formação lésbica), mas principalmente drive away dolls exatamente porque não se leva nenhum pouco a sério. as vezes a gente só quer que as coisas sejam leves. precisamos né? theater camp me cativou recentemente, quando achei perdido em algum streaming mas ainda preciso assistir love lies bleeding e toni erdman. vou priorizar depois deste texto delicioso. 🤍