De vez em quando me vem à cabeça um tweet que dizia algo como: a maioria dos homens cis passa a vida inteira sem experienciar emoções tão profundas quanto as de uma garota de 13 anos. Voltei a esse pensamento quando assisti aos filmes que resolvi trazer pra essa edição. É quase uma continuação do primeiro texto desta newsletter, sobre o gênero coming of age, mas desta vez com foco na experiência feminina da adolescência. É uma fase complicada pra todo mundo, eu sei, mas atravessá-la sendo not a girl, not yet a woman, como diria Britney, é especialmente complexo. Até a ciência tem investigado o assunto.
Segundo a pesquisadora Donna Jackson Nakazawa, especializada em neurociência, imunologia e emoções humanas, os cérebros das meninas são mais propensos ao processo de ruminação, ou seja, de ficar presa aos mesmos pensamentos de forma repetida. Isso faz com que o cérebro produza mais substâncias causadas pelo estresse, o que, a longo prazo, influencia no desenvolvimento de transtornos psiquiátricos e até no desempenho cognitivo. O que acontece é que as garotas são submetidas a mais acontecimentos que levam a esse processo — a imposição dos padrões de beleza, a dualidade entre sexualidade/sexualização, a busca por pertencimento, as tarefas domésticas e as relações familiares são só algumas das questões. Como resultado, o cérebro fica em constante estado de alerta, como se fosse atacado a cada vez que esses pensamentos surgem.
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Tem mais detalhes sobre o tema no livro "Girls on the Brink", que reúne pesquisas científicas recentes e entrevistas com garotas adolescentes. Se eu pudesse resumir, diria que é a fase em que as mulheres começam a se dar conta do tanto de pratos que vão sendo obrigadas a equilibrar.
Divagações à parte, aqui vão os melhores filmes coming of age que vi nos últimos tempos.
Girl Picture (2022)
Começo pelo meu favorito da lista, o finlandês "Girl Picture", da diretora Alli Haapasalo. Apertei o play com zero expectativas e percebi que passei quase o filme todo com um sorriso no rosto (exceto pelas partes que me fizeram chorar). O longa acompanha três garotas, Mimmi, Rönkkö e Emma, enquanto elas exploram a sexualidade, vivem o primeiro amor e lidam com traumas familiares. Tudo é contado de uma maneira muito cativante e fácil de se identificar — a vulnerabilidade, a autossabotagem, as dúvidas, tudo é muito real. Fiquei especialmente apaixonada pelo casal de garotas e pela naturalidade com que a orientação sexual é tratada. O conflito não tem nada a ver com aceitação, e é reconfortante acompanhar personagens LGBTQIAP+ bem resolvidos nesse sentido. Além de tudo isso, o elenco é brilhante e a trilha sonora é deliciosa.
Humanist Vampire Seeking Consenting Suicidal Person (2023)
Se esse filme existisse na minha adolescência, certamente teria sido o meu "Crepúsculo" — é a história de vampiros mais doce que eu já vi. Dirigida por Ariane Louis-Seize, a produção é focada em Sasha, uma vampira adolescente que se recusa a matar pessoas pra se alimentar de seu sangue, e começa a sofrer pressão da família por isso. O cenário muda quando ela conhece Paul, um garoto com pensamentos suicidas, que se candidata a ajudar Sasha. Como a ideia de morrer partiria dele, ela não precisaria lidar com o peso dessa decisão. Muitas coisas acontecem depois desse acordo, enquanto eles se aproximam e tentam realizar os últimos desejos de Paul. A sinopse pode parecer meio sombria, mas o tom é bem leve e divertido, perfeito pra escapar da realidade durante 1h30.
Hide and Seek (1996) + Sink or Swim (1990)
Aqui, vou aproveitar pra falar sobre dois filmes em um espaço só. "Hide and Seek" e "Sink or Swim" são dirigidos por Su Friedrich, uma diretora fundamental pra história do cinema queer. Ambos, de maneiras diferentes, falam sobre as transformações da adolescência. "Hide and Seek" intercala depoimentos reais de mulheres contando como se entenderam lésbicas com uma história de ficção sobre uma garota nos anos 1960 que dá os primeiros passos pra descoberta da sua sexualidade. As vivências compartilhadas mostram o quanto esse processo é plural, não existe uma experiência universal — algumas se descobriram ainda na infância, outras só na vida adulta. Mas o que fica mesmo é a ideia de revisitar a memória — e se elas não eram ouvidas no passado, têm aquele espaço agora. É um filme muito especial, que faz pensar no quanto a ideia de heteronormatividade é capaz de tirar de uma pessoa, do tempo às experiências que só são reconhecidas anos depois.
Já em "Sink or Swim", o foco é na relação de uma garota adolescente com seu pai, depois que ele se divorcia de sua mãe e deixa a família. As imagens experimentais convergem com uma narração sensível em primeira pessoa, que fala do sentimento de abandono e das cicatrizes deixadas pelo comportamento severo do pai.
Peppermint Soda (1977)
O filme se passa na França dos anos 1960, com cenários, fotografia e figurino muito, muito bonitos. Com direção de Diane Kurys, o longa mostra a vida de duas irmãs, Anne, de 13 anos, e Frédérique, de 15, passando pela rotina de rigidez na escola, discussões com a mãe, amizades que parecem ser eternas e não são, e um sentimento de incompreensão total. Eu gostei particularmente do ritmo, que começa pacato e escala pra um momento intenso de rebeldia, levando até ao envolvimento das garotas com o movimento antifascista da época.
Pra encerrar, deixo aqui o meu vídeo preferido de 2023, um coming of age da vida real, melhor do que muitos roteiristas seriam capazes de produzir. Queria poder assistir por horas à vida dessas irmãs.
Obrigada por chegar até aqui e feliz 2024!
Natália