Talvez você já tenha ouvido falar do female gaze. O “olhar feminino”, em tradução literal, surgiu como uma resposta ao male gaze, o olhar masculino que sempre dominou as produções audiovisuais. Foi com o female gaze — termo que apareceu pela primeira vez em 1975 com a crítica britânica Laura Mulvey — que as mulheres começaram a subverter essa perspectiva, reivindicando a presença de mulheres em papeis relevantes por trás e em frente às câmeras. Mas e o lesbian gaze, você sabe do que se trata?
O movimento tem a ver com a construção de narrativas por meio de uma perspectiva lésbica. Na prática, o que o lesbian gaze faz é apresentar formas mais genuínas e profundas de retratar personagens lésbicas, em histórias moldadas a partir de vivências das próprias diretoras. É diferente quando um homem conta essas mesmas histórias, por melhores que sejam suas intenções. Do problemático “Azul é a Cor Mais Quente” (em que o diretor Abdellatif Kechiche foi denunciado por abuso pelas atrizes Adèle Exarchopoulos e Léa Seydoux) ao ótimo “A Criada” (um filme que eu adoro, mas que também tem suas questões ao trazer cenas de sexo), as produções com protagonistas lésbicas dirigidas por homens tendem a olhar de maneira fetichista pra relação entre duas mulheres, sexualizando o corpo feminino de forma a atrair o público masculino.
O pensamento ao redor do lesbian gaze ganhou muita força recentemente com o lançamento de “Retrato de Uma Jovem em Chamas” (2019), filme dirigido por Céline Sciamma que põe em prática tudo o que movimento significa — é uma história de amor lésbico contada por uma mulher lésbica, protagonizada por uma atriz lésbica (Adèle Haenel) e que retrata a intimidade e a construção do desejo entre as mulheres de um jeito que só outra mulher poderia fazer. Mas a verdade é que a perspectiva de um cinema autoral lésbico começou muitos anos antes. Entre artistas pioneiras e nomes que estão transformando o que o audiovisual queer significa hoje, quero falar sobre 4 diretoras lésbicas que têm um significado especial pra mim.
Como o texto ficou maior do que eu esperava, decidi dividir o tema em duas partes. Hoje começo com duas das quatro cineastas, as pioneiras.
Barbara Hammer (EUA, 1939-2019)
“Eu escolhi o filme como um meio de transformar o invisível em visível”, disse Barbara Hammer. A cineasta e artista visual estadunidense foi pioneira do cinema LGBTQIAP+, e começou a fazer filmes ainda no fim dos anos 1960 — foram mais de 100 até sua morte, em 2019. Sua filmografia é dedicada às mulheres, em especial mulheres lésbicas, em histórias atravessadas por direitos civis, feminismo e políticas sociais. Só na década de 1970, Barbara produziu quase 30 filmes, a maior parte curtas experimentais sobre a descoberta da sexualidade. Ela dizia que, por ser uma mulher lésbica naquela época, tinha um estilo de vida experimental — “Estava o tempo todo experimentando. E ainda estou. E acho que o filme lésbico realmente pede por um trabalho experimental.” No ensaio “A política da abstração”, ela é enfática: “conteúdo radical merece forma radical.”
Em suas produções, a nudez é uma constante, mas não está ali pra chocar ninguém. É como se a diretora quisesse naturalizar o corpo feminino (décadas antes que isso fosse pauta em publicações femininas), apenas existindo e fazendo coisas comuns a todas as mulheres. Ela não só muda o conteúdo filmado, mas a forma como ele é filmado: o corpo feminino não aparece em fragmentos — um close no decote, um corte pra mostrar as pernas —, mas por inteiro, são pessoas habitando aqueles corpos.
Bom, mas por onde começar? Uma boa introdução são justamente os curtas da década de 1970. “Dyketactics” (1974) e “Women I Love” (1976) são dois clássicos da estética Barbara Hammer. Também vale ver “Menses” (1974), que retrata a menstruação de um jeito como ninguém nunca fez. Meu preferido dessa época é “Superdyke” (1975), que nada mais é do que uma contemplação de lésbicas sendo lésbicas, vivendo suas vidas felizes e em paz.
Fico pensando nessa habilidade mágica que o cinema tem de fazer a gente sonhar, ainda mais em um filme como esse, que consegue trazer normalidade às existências queer numa época em que amar outra mulher significava o oposto de “normal”. Tem um comentário sobre esse filme no Letterboxd que resume tudo: “meu gênero favorito é lésbicas andando por aí e se divertindo.”
Ah, mais um pra lista: “Beijos de Nitrato” (1992), o primeiro documentário de longa metragem da diretora, que cruza as histórias de quatro casais LGBTQIAP+ com filmagens que haviam sido proibidas (como a do primeiro filme gay dos EUA), em um resgate de memória e de não-esquecimento da cultura queer.
Chantal Akerman (Bélgica, 1950-2015)
Dizem que as relações mais duradouras são construídas e amadurecidas com o tempo, não são arrebatadoras e definitivas à primeira vista. Parte de mim gosta de acreditar nessa ideia, e ela faz especialmente sentido quando penso em como conheci o trabalho de Chantal Akerman. O primeiro filme que eu vi foi “Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce, 1080 Bruxelles”, sua produção mais famosa. Eu não sabia praticamente nada sobre a diretora belga, muito menos sobre sua sexualidade e o peso dessa vivência nas suas produções. Apesar de ter amado Jeanne Dielman, demorou quase um ano pra que eu voltasse a entrar em contato com sua obra, que foi quando assisti ao “Retrato de Uma Garota do Fim dos Anos 60 em Bruxelas” (1994) — como eu contei na newsletter anterior, é um dos meus filmes favoritos de todos os tempos. Tinha visto o título em alguma lista coming of age, resolvi assistir sem esperar muito e, aí sim, senti meu cérebro fazendo um click — eu estava obcecada. Queria ver todos os filmes e descobrir o que eu pudesse sobre a vida daquela mulher que tinha entendido tudo.
Chantal Akerman é filha de imigrantes judeus poloneses, sobreviventes do Holocausto, e decidiu que largaria tudo pra fazer cinema depois de assistir a “Pierrot le Fou” (1965), do Godard.
Entre curtas experimentais, documentários e longas mais comerciais, a passagem do tempo é objeto central nas suas produções. E ela faz isso por meio de takes demorados, deixando a câmera parada no mesmo ponto por vários minutos ou em movimentos que se repetem, que podem até gerar um incômodo, mas criam uma dinâmica que força a gente a olhar pra detalhes que costumam passar despercebidos — os carros passando, a rotina que recomeça a cada dia, as pessoas que vão e vêm. A artista dizia: “Quando alguém fala: 'vi um filme ótimo, nem senti o tempo passar', desconfio que essa pessoa esteja sendo roubada de algo muito precioso. Em meus filmes, quero que a pessoa sinta o tempo passar e tudo o que essa passagem traz consigo.”
Pra quem quiser mergulhar na obra da Chantal, deixo aqui três filmes: “Je, tu, il, elle” (1974), um curta protagonizado pela própria diretora, que mostra a crise de uma mulher depois de terminar um relacionamento — e o que acontece depois que ela volta a falar com a ex. Esse filme tem uma cena de sexo que mostra uma conexão tão real, íntima e forte entre duas mulheres que parece inovadora até pros parâmetros de hoje — que dirá pros anos 1970. Já “News From Home” (1974) traz uma troca de cartas entre Chantal, que está em Nova York, com sua mãe, em Bruxelas, na Bélgica. A relação entre mãe e filha volta a aparecer em “Letters Home” (1986), adaptação de uma peça de teatro que retrata outra troca de cartas, desta vez entre a escritora Sylvia Plath e sua mãe, Aurelia, desde seus tempos de universidade até seu suicídio. Ambos são muito, muito bonitos (e especialmente intensos pra quem tem mommy issues).
Assim como Barbara Hammer, Chantal também tem um mundo de material a ser desvendado (são mais de 50 filmes) e vale a pena explorá-lo aos poucos, pra ir montando o seu próprio quebra-cabeça de quem foi essa mulher, lésbica, artista, feminista, genial.
Eu costumo ser cautelosa em usar a palavra revolucionária — até porque sinto que hoje em dia ela é aplicada pra muitos casos que não são revolucionários, eles apenas existem, e tudo bem —, mas, aqui, duvido que exista palavra melhor. Barbara e Chantal enfrentaram todo o tipo de represália, resistência e rejeição porque queriam, antes de tudo, poder expressar sua identidade e exercer sua liberdade — sexual, inclusive. No melhor sentido possível da expressão, elas andaram pra que outras pudessem correr. E pra que mulheres como eu pudessem se sentir menos sozinhas na busca por quem são e na aceitação do que (e de quem) realmente gostam. Se Barbara Hammer seguiu experimentando até o fim da vida, eu só assino embaixo.
Só mais 5 minutinhos
Aqui vão mais quatro filmes com protagonistas lésbicas dirigidos por mulheres que merecem entrar pra sua lista.
Corações Desertos (1985)
Dirigido por Donna Deitch, o filme mostra a personagem Vivian Bell em uma jornada de autoconhecimento pós-divórcio. Ela se muda de cidade, se abre pra novas experiências e acaba se apaixonando por uma mulher que é o total oposto da sua personalidade.
Pária (2011)
“Pária” é uma das histórias coming of age mais lindas que já assisti (e que não trouxe na newsletter passada pra poder falar nessa, confesso). O longa, dirigido por Dee Rees, conta a história de uma adolescente que quer poder expressar livremente a sua sexualidade, mas vive conflitos com as amizades, com sua própria identidade e especialmente com a família, que não a aceita por ser quem é.
Rara (2016)
Os pais de Sara se separaram, e sua mãe começou a se relacionar com uma mulher. Além de todas as questões comuns à adolescência — o corpo mudando, a primeira paixão, as incertezas —, ela também tem que lidar com os confrontos entre a mãe e o pai, que não aceita bem a nova vida da ex-mulher. A direção é da chilena Pepa San Martín.
Kajillionaire (2020)
O filme de Miranda July é esquisito, engraçado e triste, tudo ao mesmo tempo. Ele conta a história de um casal de golpistas profissionais e de sua filha, Old Dolio, que veem tudo mudar quando conhecem Melanie. A relação entre Old Dolio e Melanie é, pra mim, a parte mais preciosa do longa.