Tenho há algum tempo uma anotação no meu bloco de notas do celular que diz: “psychotic women”. Não tenho certeza se ouvi isso num filme ou li em algum comentário no Letterboxd (desculpa ficar citando a rede social dos cinéfilos toda hora aqui, juro que sou uma boa pessoa), mas lembro de ter registrado o termo porque já estava com vontade de escrever sobre ele — na verdade, sobre elas: as mulheres psicóticas & grandes doidas da história do cinema.
O assunto não é nada novo, especialmente pra nós brasileiros que crescemos com as novelas e a construção de vilãs icônicas na TV — não raramente muito mais carismáticas do que as mocinhas e suas personalidades monótonas. Dá até pra gente ir mais longe e voltar à mitologia grega, pra história da Medeia, contada pelo dramaturgo grego Eurípides em 431 a.C. Na peça, Medeia é traída e abandonada por Jasão, o homem que amava e com quem tinha dois filhos. Ele se casa com Creúsa, filha do rei Creonte, e diz que não poderia perder a chance de se unir a uma princesa pra ficar com uma “mulher bárbara” como Medeia. Como vingança, ela envenena a nova esposa de Jasão e também mata os próprios filhos. Esse é um resumo bem breve da história, que já ganhou várias adaptações pro cinema, serviu como inspiração pra personagens de quadrinhos, séries e até jogos.
Durante muito tempo, Medeia foi lida como monstruosa, fria e calculista. Mas, nos últimos anos, interpretações com perspectivas feministas ganharam força, destacando a opressão que ela sofreu. Nesse contexto, é como se Medeia representasse aquelas que também quisessem se libertar das amarras do papel doméstico, e que também rejeitam a imposição da maternidade. É claro que, na peça, ela leva essa busca por justiça (ou por vingança, se preferir) até às últimas consequências, mas não é esse o ponto principal.
O que me fez trazer esse mito aqui foi o fato de Medeia viver numa área cinza: nem 100% má, nem 100% boa. Ela é ambígua, e alterna entre os papéis de vítima e de vilã — pra, no final, não ser nenhum dos dois. Pensando no tipo de produção que eu consumo agora, é justamente esse o tipo de personagem que mais me conquista.
Falar aqui sobre esse arquétipo da mulher encarada como maluca é justamente uma tentativa de entender como ele tem sido construído ao longo da história do cinema — e por que ele desperta tanto interesse. Durante muito tempo, especialmente se a gente olhar pros filmes das décadas de 80 e 90, o papel da mulher psicótica esteve associado ao da ex maluca ou da amante que não aceita o fim da relação. No clássico “Atração Fatal” (1987), Glenn Close é a personificação dessa ideia no papel da amante que não supera o término e começa a perseguir o personagem vivido por Michael Douglas e sua família, tornando-se cada vez mais "descontrolada e obsessiva", como descreve a sinopse.
Esse tipo de representação, que tende a reforçar estereótipos do imaginário masculino (quem nunca ouviu de um cara que a ex dele é louca, ou foi a ex louca da história de alguém?), soa fora de lugar hoje em dia. No filme, a gente tampouco conhece a história da personagem de Glenn Close ou outras camadas da sua personalidade.
Quem é mulher sabe o quão fácil é ganhar esse rótulo de doida, que muitas vezes surge com o objetivo de invalidar o que a gente tem a dizer. Talvez por isso seja mais natural pra gente empatizar com quem chegou ao limite e decidiu buscar vingança (ou justiça, se preferir). Mulheres que viveram com parceiros abusivos, com pais tóxicos, que sofreram violências psicológicas, físicas ou tiveram seus corpos violados.
Ela surtaram? Sim, mas o que as fez chegar nesse ponto? Elas são boas? São más? Suas ações são justificadas? Será que é errado torcer por elas? A melhor parte de se fazer todas essas perguntas é não conseguir chegar em respostas exatas. E tudo bem também se divertir assistindo a personagens que se vingam e cometem crimes contra um sistema pelo qual é impossível de torcer — ele mesmo, o próprio, o patriarcado. Mas é mais legal ainda quando esse elemento de insanidade não é o único traço de personalidade da personagem. Quando essa mulher, de novo, vive numa área cinzenta, ambígua, que não é binária.
Quando comecei a listar os filmes com mulheres psicóticas que eu mais gosto, cheguei em algumas características comuns à boa parte deles.
Mas, antes de entrar nisso, uma observação. Essas personagens são, em sua maioria, interpretadas por atrizes brancas. A imagem da mulher branca, loira e descompensada já virou um símbolo da cultura pop — de Nazaré Tedesco, a vilã eternizada por Renata Sorrah, à Renata Klein, vivida por Laura Dern na série “Big Little Lies”. E pras mulheres negras, o que sobra?
Quando se pensa em vilãs e antagonistas vividas por atrizes negras ao longo da história, prevalece o estereótipo da “mulher negra raivosa”. Sintoma da misoginia e do racismo da indústria (e de quem sempre se viu representado por ela), esse rótulo ajudou a construir uma ideia de frieza e de insensibilidade ao redor dessas mulheres, atrapalhando sua identificação com o público e anulando outras características importantes — como senso de humor, os interesses amorosos ou a vulnerabilidade.
Pra jornalista Laís Nascimento, “atribuir o sentimento da raiva de forma ‘demonizada’ às mulheres negras é mais uma forma de desumanização. Esse estigma se alinha, na sociedade, ao mito da força. Nós, mulheres negras, somos vistas como indivíduos que não precisam de atenção ou cuidado, pois somos percebidas como pessoas fortes, insensíveis e/ou que conseguem se defender sozinhas e não precisam de ajuda. A esse discurso, ainda se acrescenta o estereótipo da falta de autocontrole, de domínio do emocional sobre o racional, da instabilidade”, escreve ela no site Retruco.
A vingança
Não quero me repetir sobre o quanto a vingança pode ser um fator fundamental nesse tipo de produção, especialmente nas histórias de revolta contra uma vida — ou um sistema — de opressão. Mas existe algo de satisfatório em assistir à construção desse plano, e “Garota Exemplar” (2014) talvez seja o maior representante do gênero.
Dirigido por David Fincher, o filme é baseado no livro homônimo da autora Gillian Flynn, e narra a trajetória de Amy Dunne, uma mulher que *alerta de spoiler* forja o próprio desaparecimento pra se vingar do marido abusivo e traidor — e comete uma lista modesta de crimes pelo caminho. Uma das cenas mais memoráveis é o monólogo da personagem, interpretada por Rosamund Pike, sobre o estereótipo da cool girl.
A ética duvidosa da protagonista provoca controvérsias quanto ao seu caráter feminista. Há quem pense que, *mais spoilers*, por ela fingir que foi vítima de abuso sexual e até cometer um assassinato, represente um desserviço na luta das mulheres, reforçando os clichês negativos da mulher mentirosa e desequilibrada. A crítica faz sentido, claro, mas acho que também evidencia uma lacuna na criação de personagens femininas complexas.
O que eu quero dizer é que a Amy Dunne não precisa representar todas as mulheres — essa é uma cobrança relativamente comum de acontecer com autoras e diretoras mulheres, aliás, mas faz sentido? Assim como a gente vê todo o tipo de antagonista, anti-herói e criminoso nas produções culturais, também as personagens femininas deveriam ter o direito de exercer essa pluralidade. Esperar que até as vilãs tenham uma essência boazinha e ética não é, no fim das contas, reproduzir a mesma lógica patriarcal que nos trouxe até aqui em primeiro lugar?
Outras histórias de vingança pelas quais eu sou obcecada: “Carrie, a Estranha” (1976) e “Jeanne Dielman, 23, Quai du Commerce 1080 Bruxelles” (1976), dirigida por Chantal Akerman (já falei bastante dela por aqui). Uma das maiores garotas doidas do cinema, Carrie é uma adolescente excluída, alvo de bullying na escola, e reprimida por uma mãe fanática religiosa. Até que ela descobre poderes sobrenaturais e tudo começa a mudar — sentiu o clima de mistério?
Já em Jeanne Dielman, o peso da rotina dá o tom da narrativa, que é propositalmente lenta e repetitiva. Jeanne é uma viúva e mãe solitária que começa a se prostituir e vai, pouco a pouco, chegando ao seu limite.
O horror
O gênero do horror e a protagonista psicótica formam um par quase perfeito. Um dos exemplos mais brilhantes é “Possessão” (1981), estrelado por Isabelle Adjani, absurdamente linda e uma força da natureza no papel de Ana, uma mulher que quer se divorciar do marido e acaba despertando seu ciúme e desconfiança. Prefiro escrever pouco e recomendar fortemente que você assista — mas dá pra dizer que envolve trauma, sentimentos de luto e de posse, e o processo de perda da própria identidade quando se está em um relacionamento.
Já “Garota Infernal” (2009), que se tornou um ícone cult depois de fracassar na época do lançamento, é um filme de terror feito de mulheres pra mulheres. Ele tem roteiro de Diablo Cody (que também fez “Juno”) e direção de Karyn Kusama, e conta com as estrelas Megan Fox e Amanda Seyfried no elenco. Megan Fox é Jennifer, uma serial killer adolescente que só mata garotos, e Amanda é Needy, melhor amiga de Jennifer que tenta lidar com seus sentimentos confusos por ela.
Eu só fui assistir ao longa esse ano, então minha experiência é outra, mas sei que, pra muitas meninas queer, ele representou um momento de descoberta sexual. Hoje em dia, a gente tem visto mais filmes de terror slasher que incorporam ansiedades e vivências femininas, mas na época em que Garota Infernal foi lançado (e nem faz tanto tempo assim) isso praticamente não acontecia.
Por último, mas não menos importante, deixo como indicação “Raw” (2016), o filme de estreia da diretora francesa Julia Ducournau, responsável também por “Titane” (2021). Ele é do tipo que, quando menos você souber antes de assistir, melhor — mas fica o alerta de que talvez não seja muito indicado pros estômagos mais fracos. Gosto de pensar nessa história sob a perspectiva do que acontece quando a protagonista começa a dar espaço pros seus desejos virem à tona, sem reprimi-los. Tem descontrole, obsessão, compulsão, mas não só.
As iniamigas
Nem inimigas, nem amigas, mas parceiras unidas por um mesmo objetivo num mesmo momento. Adoro esse conceito, que vai além da simples rivalidade feminina ou da amizade incondicional. É mais ou menos por aí que passam filmes como “Thoroughbreds” (2017), protagonizado por Olivia Cooke e Anya Taylor-Joy, “Uma Questão de Silêncio” (1982) e “As Diabólicas” (1955).
Talvez você encontre uma dupla de ex-melhores amigas que se reconcilia por causa de um mesmo inimigo; um grupo de mulheres que nunca se viu antes mas que se reconhece dentro de um sistema que insiste em falhar com todas elas; ou ainda uma esposa e uma amante que querem se vingar do mesmo homem detestável.
A maior que temos
Ok, um filme pode ter uma boa história de vingança, cenas de terror, relações profundas entre mulheres. Mas pra ser imbatível no meu conceito (que é o que importa nesta newsletter pouco democrática), precisa dela: Isabelle Huppert. Ninguém interpreta mulheres psicóticas, obsessivas e malucas como a atriz francesa, que — não à toa — acumula uma longa lista de papéis desse tipo ao longo da carreira. Entre os meus preferidos estão “Mulheres Diabólicas” (1995), “A Teia de Chocolate” (2000) e o maior de todos: “A Professora de Piano” (2001).
Se eu leio a sinopse de um filme e vejo que vai ter Huppert fazendo papel de doida, simplesmente dou play e me permito viver essa experiência mágica. Posso até encontrar um ou outro mediano no caminho — tipo “Obsessão” (2019) —, mas ela sempre faz valer a pena.
Se você também tem sua doida™ de estimação, me conta nos comentários ou na resposta desse e-mail?
Obrigada por chegar até aqui. Te vejo na semana que vem,
Natália